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A tendência é de que os índices de sobrepeso e de obesidade das crianças brasileiras continuem a crescer. “Depois da pesquisa do IBGE/MS de 2008-2009, alguns levantamentos foram feitos e apontam que as crianças continuam engordando”, garante a endocrinologista Maria Edna de Melo, da Liga de Obesidade Infantil do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP..

 

Ela explica que a obesidade é uma doença complexa e multifatorial, influenciada pela genética, pelo ambiente familiar, pela escola e pela enorme publicidade direcionada às crianças, de maneira desenfreada, em que lanches são oferecidos com brinquedos e produtos estampados com os personagens favoritos de desenhos animados.

 

Para engordar, é preciso ter uma predisposição genética associada a um ambiente propício para tal finalidade, diz a médica. “Mas o peso da genética é diferente para cada indivíduo. Algumas pessoas realmente são geneticamente ‘imunes’ à obesidade, aquelas que chamamos de ‘magras de ruim’, e não irão engordar, mesmo que comam muito mais”, esclarece a especialista.

 

A especialista da Liga de Obesidade Infantil do HCFMUSP detalha ainda que, em crianças acima do peso e com obesidade, as consequências dessa condição vão desde alterações psicológicas (levando à ansiedade, raiva e à depressão) a alterações metabólicas (como hipertensão arterial, níveis elevados de gordura no sangue, resistência à insulina) e articulares (que causam dores e deformidades), e tudo isso a curto prazo.

 

Se não houver controle, alerta a médica, a médio prazo ocorre a piora do quadro, resultando, no longo prazo, em prejuízo no funcionamento do pâncreas, do rim e do fígado. A obesidade pode gerar também tendência ao diabetes, à hipertensão e a alterações cardíacas. Nos piores quadros, aumenta-se o risco de infarto, acidente vascular cerebral (AVC) e mortalidade. 

 

“A obesidade é considerada uma doença porque ela reduz o tempo de vida do indivíduo”, afirma a especialista. Segundo o estudo Global Burden of Disease, divulgado pela OMS em 2012, as doenças cardiovasculares, favorecidas por hábito alimentar desregrado desde a infância, são as principais causas de morte no mundo.


 

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A rotina alimentar do brasileiro na atualidade é pobre em nutrientes e rica em calorias, como aponta a última Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) 2008-2009, estudo feito pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em parceria com o Ministério da Saúde. São alimentos ricos em sal, açúcar, gorduras e outras substâncias nocivas ao corpo, como corantes e adoçantes, que estão por toda parte: nas lanchonetes, nos restaurantes, nos supermercados e na casa dos brasileiros, do Oiapoque ao Chuí.

 

O consumo excessivo de produtos hipercalóricos e com baixos nutrientes tem causado uma epidemia de obesidade no Brasil. Dados da Pesquisa Nacional de Saúde (PNS), realizada em 2013 também pelo IBGE, e divulgada em 2015, mostram que cerca de 21% da população sofre com obesidade e 57% tem excesso de peso. A PNS também apurou os alimentos consumidos por crianças com menos de 2 anos. Os resultados são preocupantes.


 

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O assunto no café da manhã na casa da cearense Heliane, de 38 anos, tem sido o mesmo há meses. Ela tenta convencer o filho Guilherme, de 7 anos, a fazer aula de natação em uma academia perto da sua casa, no Jardim Carumbé, região da Vila Brasilândia, Zona Norte de São Paulo. Heliane acredita que a ideia assusta o garoto: ficar de calção na frente dos colegas pode ser embaraçoso para o menino.

 

A recomendação de fazer atividades físicas veio do pediatra, mas a preocupação com o peso e a alimentação de Guilherme surgiu da própria mãe. “Meu filho começou a engordar tem uns dois anos e, desde então, estou em alerta. Não pela estética, mas por causa da saúde dele. Na minha família e na do pai dele, temos muitos parentes com problemas de saúde por conta do peso”. Guilherme tem 1,51 metros e pesa 44 quilos. O menino tem obesidade, de acordo com cálculo feito em escore-z do IMC, disponível no site da Associação Brasileira para o Estudo da Obesidade e da Síndrome Metabólica (ABESO), que indica a posição relativa do IMC da criança. 

 

Casada com o fiscal de ônibus Odilon há mais de 15 anos, a doméstica acompanhou o ganho de peso do marido até chegar à obesidade mórbida. Atualmente ele pesa mais de 120 quilos e está na fila de espera para uma cirurgia bariátrica no Hospital das Clínicas de São Paulo. Os três moram em uma casa com sala, cozinha e dois quartos, um deles improvisado.

 

Heliane tem noção da situação de saúde em que se encontram seu filho e o marido, mas a teoria é mais fácil do que a prática. Para ela, uma criança que come bem deve consumir diariamente verduras, legumes, frango e arroz. Sem alimentos preparados com fritura, como batata e linguiça, que Guilherme, ela e Odilon adoram. Mas solta uma risada sem graça ao dizer que é muito trabalhoso controlar a alimentação em sua própria casa.

 

A situação é complicada, segundo ela. O marido não colabora para melhorar a qualidade dos alimentos consumidos pela família. Ela, por outro lado, tem pressão alta e tenta regular o sal na comida do dia a dia, mas Odilon está sempre com o saleiro perto do prato para adicionar mais uma pitada. Além disso, todos os dias ele come linguiça e carne vermelha e aprecia um bom prato de arroz, feijão e farofa à vontade.

 

“É difícil controlar os dois. Eu peço para meu marido me ajudar com a alimentação do Guilherme, para que ele não sofra no futuro com o mesmo problema do pai. Mas tocar no assunto é muito delicado por aqui, por conta da obesidade do Odilon”. A doméstica afirma que toda a pressão de preparar as refeições cai sobre ela, que vez ou outra precisa lidar com os pedidos insistentes do filho para comer pastel de feira, pão com mortadela, pão de queijo, entre outras guloseimas que ele adora.

Infelizmente a história da família de Heliane não é um caso isolado no Brasil. Muitos pais sofrem para conciliar trabalho e vida em família, sentem dificuldade de mudar hábitos alimentares e frear os pedidos que os filhos fazem por guloseimas, e tudo isso é acompanhado pela pressão psicológica da doença. “Existe uma tendência à inércia, ao que é mais fácil. Se a mãe e o pai trabalham muito, e o filho que fica em casa quer assistir televisão, ao chegarem em casa, é muito mais fácil deixar a criança na frente da telinha do que sair para andar numa praça, ainda mais depois de um exaustivo dia de trabalho em que se tem, ainda pela frente, a sobrecarga do serviço de casa. Essa demanda por acomodação exige escolhas fáceis”, diz a endocrinologista Maria Edna de Melo, médica assistente da Liga de Obesidade Infantil do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP, em São Paulo. Todas essas questões se refletem nas escolhas alimentares da família.

 

Youtube/Reféns da saciedade: os conflitos da obesidade infantil

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Michelle Lee
Anna Rodrigues
Rafael Albuquerque

Professores

De acordo com a pesquisa, 32% das crianças até 2 anos de idade já bebem refrigerantes ou sucos artificiais, e 61% consomem biscoitos, bolachas e bolo. A POF de 2008-2009 também faz um alerta importante: o consumo de vegetais na dieta do brasileiro está abaixo da porção mínima diária de 400 gramas de frutas, legumes e verduras, recomendada pela Organização Mundial de Saúde (OMS). E, entre as crianças, a situação é ainda pior.

 

Patrícia Colombo, nutricionista do Ambulatório de Obesidade Infantil do Hospital Escola Wladimir Arruda, pertencente à Universidade de Santo Amaro, na Zona Sul de São Paulo, explica que ao ingerir bebidas açucaradas, biscoitos recheados, salgadinhos e outros produtos industrializados, poucos nutrientes são aproveitados pelo organismo.

 

“Esses alimentos contêm o que chamamos de calorias vazias, ou seja, têm muitas calorias e nenhum nutriente. Em excesso, essas substâncias causam inflamações das células”, diz Patrícia. Essa condição por sua vez, “dificulta o funcionamento do organismo, podendo levar a uma desaceleração do metabolismo. O metabolismo lento deixa de queimar adequadamente as calorias, que se iniciam pelos carboidratos, proteínas e, por último, queimam gordura”.


 

As crianças obesas também costumam ter postura física errada, por causa do peso excessivo. No Instituto Movere, em São Paulo, a fisioterapeuta Evani Moreira dos Santos conta que as crianças sentem muitas dores nas articulações, principalmente nos joelhos e nos pés. “A sobrecarga das articulações podem gerar na criança doenças antes do tempo, como osteoporose”.

 

O diagnóstico da obesidade é feito com o cálculo do índice de massa corpórea (IMC) (relação entre peso e altura) e, de acordo com sua posição do resultado desse cálculo no gráfico de percentil do IMC, é determinada a classificação do seu estado nutricional.

 

Alguns pais julgam saudável o peso de uma criança baseando-se apenas no resultado do IMC. O problema é achar que uma criança está com peso normal quando ela está acima do peso. Como ela cresce, e a composição corporal é diferente, existe um gráfico de IMC por idade, específico para cada sexo. “Um IMC de 18,5, por exemplo, é bem baixo em um adulto, porém, em uma criança de cinco anos, é obesidade”, diz Maria Edna. Segundo ela, é fundamental lembrar que, para fazer o diagnóstico de obesidade infantil, é preciso usar as curvas de referência. O Ministério da Saúde adota as curvas da Organização Mundial da Saúde de 2007.


 

Um dos obstáculos que costuma dificultar o tratamento da obesidade infantil é a percepção dos pais, que não conseguem identificar o real peso dos filhos. Segundo o que apontam estudos científicos do Canadá, Austrália, Reino Unido, Finlândia e Brasil, há uma tendência de os responsáveis pelas crianças avaliarem o peso corporal de seus filhos obesos como eutróficos (peso normal) e, os que tinham peso normal, como abaixo do peso.

 

Um desses estudos, o Obesidade infantil na percepção dos pais, do Centro Universitário das Faculdades Metropolitanas Unidas (FMU), de São Paulo, é categórico no assunto. “Muitos pais de filhos com excesso de peso não reconhecem ou não consideram que este seja um problema de saúde. A falta de consciência do excesso de peso e dos fatores de risco relacionados dificulta o sucesso da prevenção e tratamento, bem como a consequente diminuição da prevalência da obesidade na infância”.

 

Mães, em especial, que passam a maior parte do tempo com os filhos em relação aos pais, demonstram esse problema. “Eu noto no meu consultório que muitas mães não enxergam a obesidade dos filhos, é impressionante. Elas acreditam que eles estão no peso certo. Talvez isso aconteça pois ainda existe uma cultura em que se valoriza a criança ‘gordinha’ como saudável e bem cuidada. É uma ideia enraizada”, conta a psicóloga clínica Patrícia Vieira Spada, mestre e doutora em nutrição, autora do livro Obesidade Infantil: Aspectos Emocionais e Vínculo Mãe/Filho, publicado pela editora Revinter.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Na família de Andreia e Cesar, de Lorena, cidade do Vale do Paraíba localizada a 200 quilômetros da capital paulista, Gustavo, de 4 anos e meio, teria obesidade nível 1, segundo critérios da calculadora de IMC infantil do Hospital Infantil Sabará. O menino pesa 26 quilos e mede 1,15 metros. A família entende que o ganho de peso precisa ser monitorado, mas ainda não é encarado como doença.

 

“É lógico que a gente tem que tomar sempre o cuidado para que ele não fique gordinho, a gente monitora, mas também não ficamos preocupados. Quando eu olho para o Gustavo, vejo uma criança saudável, mas não obesa. É diferente do que a gente vê nas crianças que são realmente obesas, com uma barriga grande e uma bochecha gorda. O Gustavo tem um porte físico mais encorpado, eu diria. Mas eu vejo ele como uma criança saudável”, garante o pai, César, 44 anos, engenheiro elétrico no Centro Técnico Aeroespacial (CTA), em São José dos Campos, e professor universitário no Centro Universitário Salesiano de São Paulo (Unisal), em Lorena.

 

 

 

 

 

Youtube/Reféns da saciedade: os conflitos da obesidade infantil

Mães sentem muita dificuldade em impor limites, e muitas vezes esse sentimento está ligado à culpa que elas sentem, seja por terem pouco tempo de aproveitar os filhos ou por traumas que elas carregam. E a alimentação se torna uma via de escape. “É onde elas tentam se desculpar por situações de que elas não têm culpa nenhuma, mas sentem que têm. Isso faz com que a criança sofra consequências que não deveria sofrer”, diz a psicóloga Patrícia Spada.

 

A nutricionista Ana Paula Bechara percebe regularmente comportamentos de compensação em mães que não podem estar presentes em tempo integral na vida do filho. Nesse contexto, elas dão o alimento em troca da ausência, sem calcular a quantidade ou classificar o que é saudável. “É uma ânsia em preencher o outro, em prover. Existem por trás desses comportamentos algumas crenças socioculturais de que mãe boa é aquela que não nega alimento, criando uma impossibilidade para ela de colocar um limite e negar”, afirma a especialista. Além disso, Ana Paula observa que algumas experiências de privações na infância da mãe são projetadas na criança, interferindo no ato de alimentar.

Youtube/Reféns da saciedade: os conflitos da obesidade infantil

Na residência do casal de Lorena, Andreia, 42 anos, gerente operacional de banco, procura seguir a orientação da pediatra de Gustavo, que, no final de 2014, recomendou a diminuição da oferta de alimentos ao menino. Entretanto, a bancária sente dificuldades em controlar as porções servidas ao garoto. Diversas vezes, ele chega a pedir até quatro pedaços de bolo de cenoura, sua sobremesa favorita.

 

“Eu tento controlar, mas é muito difícil dizer não. Ainda mais para mim, pois vim de uma família que sempre disse que as crianças não podem passar vontade”. Andreia também precisou pedir para que os familiares diminuíssem a quantidade de comida que dão ao garoto, e relata que os tios e os avós acham um exagero, ficam com dó e acabam cedendo. “Meus familiares dizem ‘coitado, o menino vai passar vontade’, e sempre fazem suas vontades”.

 

Os especialistas garantem que é possível fazer mudanças sem prejudicar os filhos. “As crianças não morrem de fome tendo comida em casa”, afirma a Maria Edna, médica da Liga de Obesidade Infantil do HCFMUSP. “Então, é melhor que elas não comam por algumas horas do que os pais se submeterem às chantagens dos filhos de dizerem ‘eu só como se for isso’. Elas sempre vão testar os pais para ver até onde podem ir. O que eu observo em algumas famílias é que existe uma inversão de responsabilidade, que precisa ser controlada desde cedo”. 

 

O ambiente familiar tem muita influência sobre as crianças e a construção de seus hábitos, especialmente aqueles que envolvem a alimentação, pois os pais carregam com eles suas experiências. Inclusive, a forma como lidaram a vida inteira com a comida. A nutricionista Ana Paula Bechara, mestra em saúde pública pela Universidade de São Paulo, com pesquisa científica nas vivências alimentares e dos sentimentos de mães de filhos obesos, observa a importância de tratar não só a criança com a doença, mas a família. A criança é um sintoma da família, do que acontece no meio familiar, diz ela. “O que eu vejo frequentemente são relatos de crianças recorrendo à alimentação por fatores emocionais. Situações de ansiedade, em que a criança acorda de madrugada e come um pacote inteiro de bolacha. É preciso compreender o passado da mãe e identificar quais comportamentos dela estão envolvidos com a obesidade da criança”.

 

 


 

Heliane passa o dia inteiro no trabalho e, por conta das horas longe de Guilherme, sente-se mal por não estar com ele. Assim, procura agradá-lo com comida, o que dificulta ainda mais a mudança no hábito alimentar do menino de 7 anos. “Por ele ser filho único, eu quero agradar. Outro dia fomos à feira, e ele queria comer dois pastéis. Eu sei que não vai ser bom para ele, mas aquela emoção, aquele rosto... Eu acabo dando outro”, conta Heliane, afirmando que, às vezes, é a mãe quem estraga o filho.

 

A maneira como os responsáveis ofertam os alimentos às crianças é decisiva para o relacionamento desses indivíduos com a comida. “Ninguém oferece brócolis para uma criança com o mesmo tom que oferta batata frita. Sempre há a expectativa de que a criança goste mais de batata frita do que de brócolis. É a forma com que se apresenta isso, se o brócolis for apresentado de uma maneira atrativa e bacana para a criança, ela vai adorar tanto quanto a batata frita”, conta Gabriela Kapim, nutricionista e apresentadora do programa Socorro! Meu Filho Come Mal, do canal por assinatura GNT.

 

A carioca conta que enxerga essa situação no seu cotidiano. “Como eu gosto de comidas saudáveis, eu apresento para as crianças e para os meus filhos com uma empolgação e com uma expectativa de que eles vão gostar daquilo. E eles acabam gostando, porque eu passo isso para eles. Então eu acho que essa postura de oferecer coisas não saudáveis achando que a criança de cara vai gostar, é a postura do adulto, é assim que se ensina que batata frita é mais gostoso do que brócolis, porque de algum jeito os adultos colocam dessa forma para a criança”. Em sua página do Instagram, a nutricionista apresenta receitas alternativas e saudáveis para as crianças.

 

A família de Andreia, César e Gustavo, de Lorena, considera a alimentação de Gustavo regrada, mesmo com a possível obesidade do filho e apesar de o menino recusar a maior parte dos legumes e das verduras ofertados no almoço e no jantar. É preciso mesclá-los no feijão e no arroz. Quanto às carnes, ele costuma comê-las empanadas para que se pareçam com nuggets (carne empanada e pré-frita industrialmente), mistura favorita do pequeno lorenense. Quando esse disfarce não é possível, os pais tentam convencer o menino que a carne que está no prato é linguiça, já que Gustavo também aprecia esse embutido de carne suína. "Precisamos camuflar. Infelizmente foi o único jeito que encontrei de fazer ele comer outras coisas", desabafa a mãe.

 

A falta de tempo dificulta a modificação na alimentação dessas famílias. Hoje as pessoas têm uma rotina diferente do que tinham há 30 anos. Falar para os pais banirem toda a comida industrializada é impossível, na visão da endocrinologista da Liga de Obesidade Infantil do HCFMUSP, Maria Edna de Melo. Não adianta só criticar, diz ela, “pois a indústria tem um papel importante na sociedade, e ela vai se modificar para se adaptar às novas necessidades com a evolução da população, seja com o aumento da obesidade ou outra doença importante. Precisamos orientá-los sobre quais são os alimentos industrializados que eles podem consumir, de forma que traga menos prejuízo à saúde”.

 

Adequar-se à uma nova dieta é um grande passo para as famílias que precisam mudar as escolhas alimentares. A nutricionista Tatiana Silva Damasceno, do Instituto Movere, conta que as crianças e adolescentes atendidos pela fundação não recebem prescrição de dietas. Os atendimentos são feitos em grupos, semanalmente, e as famílias recebem orientação de reeducação alimentar através de atividades, palestras, brincadeiras e oficinas culinárias. “Se passarmos dietas, eles não seguem. E se, por acaso, seguirem, é por pouco tempo. Por isso, focamos na reeducação dessas famílias. Cada semana é um tema e uma meta, por exemplo, falamos sobre os tipos de açucares, contamos os produtos que têm esse ingrediente em excesso e sugerimos trocas inteligentes e assim por diante. Depois, a missão é diminuir o consumo. E assim, notamos uma grande mudança”, fala a especialista. Para ela, tão importante quanto emagrecer, é manter um peso saudável.

 

Mesmo depois de passar em consulta com uma nutricionista, Heliane abriu mão da dieta prescrita. Agora, ela mantém de forma intuitiva a rotina alimentar de sua família. O cardápio fugia muito do que estavam habituados e isso desanimou a mudança alimentar na casa amarela do Jardim Carumbé, na Zona Norte de São Paulo. “Se para um adulto comer arroz integral já é difícil, imagine para uma criança! Eu tive dó de forçar”.

 

Heliane ficou frustrada porque a nutricionista exigiu mudanças extremas. “É complicado manter uma criança com torrada, pão integral e outros alimentos de regime. Sem contar o custo que tudo isso tem, sai muito caro. Nas primeiras semanas eu fiz direito, consegui manter a alimentação de três em três horas. Mas depois eu desisti, tanto que nunca mais voltei à consulta”, conta Heliane, que batalha diariamente para controlar os beliscos e pedidos do filho, sem o cardápio recomendado pela nutricionista.

 

Um dos obstáculos que muitos entrevistados relataram ao longo desta reportagem foi o custo alto de alimentos light, diet e saudáveis. Especialistas garantem que é um mito. Estudantes da graduação em nutrição do Centro Universitário de Brasília realizaram um levantamento em 2015 sobre o verdadeiro valor gasto em uma alimentação com base no Guia Alimentar para a População Brasileira, do Ministério da Saúde.

 

A curto prazo, o custo das refeições do dia à base de alimentos in natura ou minimamente processados seria de R$ 11,84 e, à base de alimentos ultraprocessados, seria de R$ 24,77 reais - diferença de R$ 12,93 reais (52,2%). A médio prazo, essa diferença passa a ser de R$ 387,90 reais e, a longo prazo, de R$ 4.654,80, afirma o estudo.

 

Alimentos prontos ou industrializados tendem a ser mais fáceis de preparar. Manter uma alimentação mais saudável, contudo, não implica em mais gastos na hora de fazer a compra no supermercado. “Muitas vezes sai até mais barato. Comer com qualidade não significa comprar produtos mais caros (como os diet ou light), mas, sim, procurar os alimentos in natura da época, que em geral são mais baratos na estação do ano em que a produção é maior”, sugere Patrícia Colombo, nutricionista do Ambulatório de Obesidade Infantil do Hospital Escola Wladimir Arruda (HEWA), da Universidade de Santo Amaro. “Priorizar as preparações simples em casa, sem muitos requintes, molhos, queijos amarelos, facilita. Elas não demandam tanto tempo de preparo e são mais saudáveis. Tudo é uma questão de exemplo. Se a mãe, o pai ou o responsável não comem esse tipo de alimento, a criança certamente não vai se interessar também”, explica.

 

Mas a correria do dia a dia pede praticidade. E produtos que contêm grandes quantidades de açúcar, gorduras, sódio, corantes e conservantes são realmente mais práticos, embora seu processamento requeira uma transformação química, com mudanças de gosto e temperatura, que resulta na queda de nutrientes, quando comparados ao alimento in natura.

 

A combinação bombástica entre gordura, sal e açúcar é hiperpalatável e faz com que as pessoas se acostumem facilmente com o gosto e o identifique como agradável. ara mães e pais que chegam em casa depois de um longo dia de trabalho, esses produtos oferecem uma facilidade bem-vinda. A nutricionista Patrícia Colombo diz que os alimentos processados estão entre os mais consumidos pelas crianças atualmente. “Bolacha recheada, salgadinho, sorvete, hambúrguer, alimentos rápidos, fáceis de preparar. São produtos doces, de sabor gostoso e maior aceitação pela criança. A gente costuma dizer que vicia pois acaba virando um hábito. É mais fácil, é o que se tem em mãos e fica pronto na hora. Então acaba não existindo o interesse pelos outros alimentos, que também podem ser gostosos. É uma questão de mudança de hábito”.

 

Youtube/Reféns da saciedade: os conflitos da obesidade infantil

Isabela tem apenas 12 anos, mas já lida com certa maturidade com a obesidade que adquiriu nos últimos tempos. A garota faz tratamento multidisciplinar na Liga de Obesidade Infantil do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP, para combater a doença. Aos 4 anos, quando ainda morava com a mãe Vanessa, Isabela começou a engordar. A avó materna Keiko conta que mãe e filha não se alimentavam direito, por conta de comerem muitas comidas industrializadas. O miojo era um dos mais práticos, por isso, Vanessa sempre fazia esse prato. “Mas a partir do momento em que a Isa veio morar comigo, há três anos, eu cortei o macarrão instantâneo dela. Minha filha não tinha muito tempo para preparar os alimentos, trabalhava demais e escolhia o mais fácil. Mas ao longo dos anos minha neta engordou”, relembra a avó.

 

Hoje, Isabela pesa 80 quilos e tem 1,61 metros de altura. Ela faz street dance aos sábados e natação duas vezes na semana, em um clube próximo à sua casa, no Ipiranga, bairro da Zona Sul de São Paulo. A garota já sente os pontos positivos do tratamento que faz no Hospital das Clínicas, desde abril de 2015, pois já emagreceu 12 quilos, e reconhece o quanto já mudou seus hábitos, mas também fala na vontade de desistir. “Às vezes só quero comer. Gosto de tudo, brigadeiro, miojo, lanche, churrasco… Mas penso no que realmente vai fazer bem para a minha saúde”.

 

O que se percebe, em muitos casos de obesidade infantil e adulta, é o costume dos brasileiros de comer em grande quantidade. “As pessoas não comem por uma necessidade fisiológica, que tem um limite, e não se conscientizam de que não é preciso se alimentar até passar mal ou colocar no prato tudo o que se tem na mesa, como se fosse a última refeição. Não vai ser”, garante a endocrinologista do HC de São Paulo, Maria Edna. “Se antes no café da manhã as pessoas tinham apenas um pão para comer, hoje elas têm pão, queijo, presunto, leite, manteiga, carne, ovo, bacon. O número de alimentos disponíveis é muito maior, e as pessoas costumam pensar que ‘se tem tudo isso, por que é que eu não vou comer?’. Não deveriam, pois não precisam de tanta comida”, garante a médica.

 

Muitas famílias se reúnem semanalmente para socializar, e a fartura é grande nesses eventos. Heliane conta que a família de Odilon, que mora na Zona Sul de São Paulo, serve em um único almoço três tipos de carne, como frango frito, linguiça e carne vermelha assada. Arroz, feijão, farofa, macarrão e nhoque. As sobremesas também são diversas, como pudim e mousse de maracujá. A doméstica conta que os pais e os irmãos de seu marido sofrem com obesidade mórbida também, mas isso não freou o consumo excessivo de comida na casa deles. Os costumes não saudáveis das famílias dificultam bastante a reeducação alimentar necessária para frear a obesidade de crianças como Isabela, Gustavo e Guilherme.

 

Os especialistas alertam: os responsáveis pela alimentação da criança são exclusivamente os pais, por escolherem e comprarem o que é servido nas refeições. A nutricionista Gabriela Kapim, apresentadora do programa Socorro! Meu Filho Come Mal, fala da resistência de alguns pais em assumir o compromisso com a mudança dos hábitos de vida dos filhos. “A verdade é que a responsabilidade é deles. Quem tem o poder de ajudar as crianças são eles, que precisam se encorajar e entender o valor disso”, diz a apresentadora.

 

Outra família que sofre com a dificuldade de impor limites e modificar as refeições é a de Murilo, que vive no Jardim Alviverde, Zona Sul de São Paulo. O menino tem 10 anos e aproveita a ausência da mãe durante o dia para assistir televisão. Sua mãe Márcia pega no seu pé com relação ao sedentarismo, “ele fica o dia todo deitado assistindo televisão, dificilmente ele sai de casa e não gosta de jogar bola”, reclama.

 

A doméstica fala da ansiedade de Murilo, que vez ou outra assalta à geladeira sem permissão, principalmente quando é negado a ele algum alimento que ele aprecia muito. Com 1,60 metros de altura e 76,7 quilos, o garoto tem pressão alta e faz tratamento no Ambulatório de Obesidade Infantil, do Hospital Escola Wladimir Arruda (HEWA), da Universidade de Santo Amaro, sob orientação da nutricionista Patrícia Colombo.

 

Em 2014, antes de iniciar a intervenção, Murilo sentiu fortes dores no peito quando estava na escola. “O médico pensou que ele estivesse infartando. Mas depois de alguns exames soubemos que não, e estava tudo normal, teve apenas uma crise”, conta a mãe. Nesse período Murilo perdeu 4 quilos, porque a família inteira ficou preocupada e o ajudou a controlar a alimentação. Mas depois, ganhou tudo de novo, diz Márcia. Nos finais de semana, as famílias da mãe e do pai de Murilo se reúnem e pedem delivery, geralmente pizzas, lanches e salgadinhos fritos.

 

Frustrada, ela pensa diversas vezes em parar com o tratamento do filho, porque mesmo depois de um ano, Murilo não emagreceu. A insatisfação de Márcia também vem do marido, Márcio, de 40 anos. “O pai do Murilo não colabora. Muito pelo contrário. No carrinho de compras do supermercado, ele coloca pipoca de micro-ondas, salgadinhos e outros produtos que ele não poderia comer. Meu marido come errado e em grande quantidade também”. Mesmo garantindo que, por ela, refrigerante, chocolate e bolachas recheadas não entram na casa, vez ou outra, ela acaba cedendo. “Se você olhar no meu armário não tem nada disso, eu não compro mais. Mas essa semana eu comprei, na segunda, um pacote grande de bolacha de nata e quatro pacotes de bolacha recheada… Na terça não tinha mais nada”.

 

Muitas crianças são mordidas pelo mosquito da publicidade infantil, inclusive Guilherme, da Brasilândia. Quando ele assiste televisão muitas propagandas chamam a atenção dele. Principalmente quando são de lanches como do Bob’s e do McDonald’s. “Às vezes, ele não come o lanche, ele quer mesmo é ganhar o brinquedo que vem de brinde”, conta Heliane, que diz evitar levar o filho nas lanchonetes de fast foods espalhadas por São Paulo.

 

Guilherme não é o único a sucumbir a essa quimera. “A propaganda é muito bem feita para seduzir e atrair o consumir para aquilo que eles querem vender. E a criança é uma presa fácil, vendem para ela um mundo que ela acredita que vai ter, ao consumir aquele produto”, diz a psicóloga Patrícia Spada.

 

Essa relação perversa entre a publicidade moderna e a obesidade infantil está bem retratada no documentário Muito Além do Peso, de 2012, dirigido por Estela Renner. O filme mostra histórias de famílias reais, de todos os cantos do Brasil (até mesmo nos confins do Amazonas), que sofrem com as consequências de uma alimentação inadequada.

 

O documentário detalha, ainda, como a publicidade utiliza os estímulos visuais, para se tornar apelativa e irresistível para as crianças. E como a falta de educação alimentar, aliada ao excesso de produtos processados presentes na merenda escolar, comprometer a saúde de uma geração inteira.

 

Uma forte característica dos produtos industrializados é a associação das marcas à publicidade. As grandes empresas do setor alimentício usam personagens de desenhos animados, filmes, novelas e jogos para ilustrar as embalagens dos seus produtos. O jornalista Renato Godoy acredita que a publicidade infantil deva ser terminantemente proibida no Brasil. Ele é pesquisador do Criança e Consumo, projeto do Instituto Alana, organização da sociedade civil e sem fins lucrativos, criada em 1994, com o propósito de desenvolver projetos que garantam condições para a vivência plena da infância. O abuso da publicidade direcionada para às crianças, considerado um dos diversos fatores que contribui para o ambiente “obesogênico”, tem levantado uma série de debates ao redor do mundo.

 

Estudos sugerem que a publicidade de produtos industrializados direcionada para as crianças tem influência na construção de seus hábitos alimentares. O Conselho do Câncer da Austrália e a Universidade de Liverpool, no Reino Unido, que monitoraram mais de 12 mil publicidades de alimentos de 11 países, inclusive do Brasil, constataram que 67% das peças publicitárias para esse público, nesses países, são de itens alimentícios não saudáveis. Um nível alarmante.

 

A preocupação com a situação é tanta que o último relatório da Comissão para Erradicar a Obesidade Infantil, da Organização Mundial da Saúde (OMS), defende a restrição da publicidade de alimentos não saudáveis como uma das medidas necessárias para orientar a população no combate à doença, de maneira a reverter o atual quadro da obesidade infantil em vários países.

Crianças com sobrepeso e obesidade estão ainda mais vulneráveis a essa propaganda. Estudo americano comparando crianças com peso normal e sobrepeso conclui que, no grupo dos “fofinhos”, há um aumento de 134% no consumo de produtos não saudáveis, como fast foods, biscoitos e afins, após a exposição à publicidade deles, diz especialista do Alana, Renato Godoy. “Elas assimilam aquela campanha mais rapidamente e criam um desejo quase irresistível de consumo por aquele produto anunciado. Então, pedem aos seus pais, excessivamente, até conseguirem”.

 

O pesquisador do Instituto Alana, no entanto, segue confiante nas mudanças desse quadro, no futuro. Para ele, existe um acordo cada vez maior da sociedade para regulamentar a questão da publicidade infantil. No âmbito geral, as mudanças são visíveis nesses dez anos do projeto Criança e Consumo, mantido pelo Alana, opina o jornalista. “Muito se discutiu no Congresso Nacional e não há um grande veículo de mídia que não tenha debatido esse tema nos últimos três anos”.

 

Godoy conta que o ápice desse movimento aconteceu em 2014, com o pontapé inicial da Resolução 163, do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), que trouxe à luz a definição do que é abusividade da publicidade direcionada para a criança. A partir da leitura combinada da Constituição Federal do Estatuto da Criança e do Adolescente e do Código de Defesa do Consumidor, o Instituto entende que a publicidade infantil já é abusiva, e portanto, ilegal. “A resolução de 4 de abril de 2014 detalhou o que é essa abusividade, que se vale da deficiência de experiência de julgamento da criança”, explica Godoy.

 

Na época, houve um debate intenso com oposição forte dos grandes grupos que representam interesses do mercado. “Sentindo-se acuados com relação a qualquer tipo de debate, logo que a resolução foi publicada, eles rebateram qualquer tipo de regulação, deslegitimando a causa”, conta Godoy. Por outro lado, a mídia fomentou a questão, a ponto de ela ser o tema da redação do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) em 2014. Agora cabe às empresas se adequarem à legislação brasileira.

 

A bandeira do Instituto Alana não é a de pôr fim aos produtos destinados às crianças, como um brinquedo, uma caneta ou material escolar. Eles podem ser perfeitamente anunciados, mas aos pais e com a linguagem e referências do mundo adulto. “É importante ressaltar que algumas empresas moldaram sua publicidade. Mas ainda temos um longo caminho pela frente”.

 

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No pátio da Escola Estadual Professor Paulo Rossi, Mirandópolis, Zona Sul de São Paulo, apesar da grande quantidade de mesas, o recreio do 1o ao 3o ano do Ensino Fundamental é marcado por brincadeiras e pouco interesse das crianças pela merenda. Muitas delas andam com a própria lancheira que, na maioria das vezes, tem o famoso suco de caixinha acompanhado pelo pacotinho de bolacha ou bolinho industrializados.

 

Os demais alunos preferem comprar comida na lanchonete, onde são vendidos refrigerantes, chicletes, chocolates, salgados, como as famosas batatas chips, e outras guloseimas – hiperpalatáveis e calóricas. São quase cem crianças que ocupam o pátio, mas apenas duas comem a merenda oferecida pela escola, que traz arroz cozido, salada de repolho e carne de panela. Apesar de o cardápio ter sido balanceado por nutricionistas, a merenda não é tão atraente para a maioria das crianças da escola.

 

Lorenzo está entre os cerca de 98 alunos que passam longe da merenda escolar da Professor Paulo Rossi.

 

O pai de Lorenzo, Henrique, levou um “presta atenção” da esposa e passou a cuidar mais da saúde. Aos 31 anos, ele pesava 148 quilos. Hoje, seis meses depois, já perdeu 50 quilos com reeducação alimentar e exercícios físicos. A mãe, Michelly, cabeleireira, 35 anos, confessa que atualmente sua alimentação não é das melhores. Quando ela chegou à São Paulo, vinda de Goiás, seu estado de origem, surpreendeu-se com a quantidade de comida que a família do marido consome.

 

Lorenzo, por sua vez, parece simpatizar mais com o estilo alimentar da mãe do que com o esforço do pai para a adoção de um hábito de vida mais saudável. “Eu não tenho como preparar um lanche caseiro para mandar pra escola. O Lorenzo não come a merenda. Às sextas, ele compra na cantina, geralmente um refrigerante e salgadinho. Durante a semana, mando um suquinho e um bolinho recheado ou uma bolacha waffer. Eu não consigo fugir disso porque simplesmente não tenho tempo”, lamenta Michelly, que trabalha o dia todo fora de casa e não pode contar com nenhum parente para ajudar na reeducação alimentar de Lorenzo.

 

Resultado: o pequeno tem 9 anos, 1,46 metros de altura e pesa 56 quilos. Segundo a tabela de cálculo da Associação Brasileira para o Estudo da Obesidade e da Síndrome Metabólica (Abeso), Lorenzo teria obesidade grave. Na escola, seu lanche favorito são as bolachas recheadas e sucos de caixinha, itens que são banidos do cardápio balanceado das nutricionistas que elaboram a merenda escolar servida todos os dias na escola.

 

No Brasil, Os responsáveis pela elaboração do cardápio e compra de alimentos (dando preferência aos in natura e à introdução de novos alimentos no paladar dos alunos) para as escolas públicas são os governos municipais e estaduais, verba do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), órgão do Governo Federal.

 

Na cidade de São Paulo, essa função é desempenhada pelo Departamento de Alimentação Escolar (DAE), ligado à Prefeitura Municipal. Semanalmente é publicado tanto no Diário Oficial quanto no site a merenda que será oferecida para as crianças.

 

Pensando na saúde das crianças e na alta do crescimento da obesidade entre elas, a Prefeitura de São Paulo aceita projetos que divulguem e promovam a troca de experiências em educação alimentar e nutricional nas crianças e jovens, visando criar consciência e incentivar escolhas saudáveis entre elas.

 

No início de 2015, a Lei Municipal 16.140, que torna obrigatória a inclusão de produtos orgânicos ou de base agroecológica na alimentação escolar da cidade, foi sancionada pelo prefeito Fernando Haddad.

 

Além de incentivar a agricultura familiar, a medida insere um cardápio saudável, livre de produtos químicos sintéticos, na alimentação dos alunos. Essa é apenas uma das diversas regulamentações que determinam restrições em prol de uma alimentação mais balanceada nas escolas.

 

Embora seja um avanço considerável, o esforço do poder público em algumas regiões do país, como na cidade de São Paulo, de promover a educação alimentar das crianças na escola, para uma dieta mais saudável, enfrenta dois inimigos de peso no caminho de seu pleno sucesso. As famílias e a indústria, no geral, ainda não parecem suficientemente engajados na mudança para reverter a obesidade e o sobrepeso em nossas crianças.

 

As escolas particulares, talvez por serem mais suscetíveis ao gosto (e ao bolso) do freguês, formam um cenário bastante heterogêneo, quando o assunto é política educacional e sistêmica voltada para adoção de hábitos alimentares saudáveis por seus alunos.

 

Em Lorena, cidade do Vale do Paraíba, em SP, o colégio particular de Gustavo oferece um cardápio semanal e incentiva a variedade de refeições, sempre com fruta, carboidrato, proteína e suco. Sexta-feira, no entanto, é o dia livre, ocasião em que os alunos podem trazer qualquer lanche para a escola. Esse é também o dia da semana em que Gustavo descobre coisas novas para exigir na despensa da casa.

 

“Quando vamos ao supermercado, ele pega as coisas da gôndola e vai colocando no carrinho. Eu tiro a maioria, mas a justificativa dele é sempre a mesma: ‘mamãe, fulano levou na escola e eu gostei. Compra para mim também?’”, diz a mãe Andreia. Ela confessa que tem dificuldades de negar esses pedidos, pensando que o menino pode se sentir discriminado, já que ele sabe que outras crianças se deliciaram com toda essa variedade de tranqueiras industrializadas que, geralmente, são pouco nutritivas.

 

Gustavo não é o único que gosta de produtos embalados em pacotinhos e caixinhas. No pátio do Colégio Dante Alighieri, no bairro Cerqueira César, Centro-Oeste de São Paulo, a maioria das crianças não acham graça no lanche que a cantina oferece. Elas dizem que é legal levar de casa. Frutas são raras nas lancheiras, que, por outro lado, são carregadas com sanduíches, sucos de caixinha e pacotes de bolacha recheada ou bolinho.

 

A cantina do Dante Alighieri, por sua vez, diferentemente das escolas públicas e de alguns particulares, como a do Gustavo, em Lorena, não apresenta um cardápio mais saudável do que o lanche levado de casa pelas crianças. Em suas prateleiras desfilam sucos industrializados, biscoitos salgados, esfirras folhadas, batatas smiles, biscoitos de polvilho, entre outras guloseimas.

 

O ambiente escolar é um contexto extremamente importante para prevenção da obesidade, uma vez que é possível trabalhar com aprendizagem de hábitos alimentares adequados, valorizando a importância de cada alimento para o desenvolvimento do corpo humano, diz a psicóloga Priscilla Machado, membro da Abeso (Associação Brasileira para o Estudo da Obesidade e da Síndrome Metabólica). “A influência pode ser positiva, caso no ciclo de amizades tenham escolhas saudáveis. Mas por outro lado, pode ser negativa, se os colegas consumirem produtos inadequados na maioria dos dias (refeições e lanches)”.

 

No cardápio da escola de Gustavo, o garoto de Lorena de apenas 4 anos, as frutas são obrigatórias todos os dias. Mas embora estejam na lancheira do menino, não são raras as vezes em que voltam para casa. Andreia conta que o colégio tem muitas atividades, e as crianças querem brincar, fazer muitas coisas ao mesmo tempo, e, por isso, deixam de comer as frutas.

 

A nutricionista Ana Paula Bechara afirma que o ideal é mesmo ter um momento exclusivo para a alimentação, de maneira que a criança possa exercitar escolhas mais conscientes nos quesitos qualidade e quantidade dos alimentos.

 

A nutricionista e apresentadora do programa do GNT "Socorro, meu filho come mal!", a carioca Gabriela Kapim, defende que é no ambiente familiar que as crianças devem aprender a comer. “Eu não julgo as escolas, porque não é o lugar adequado para ensinar a criança a comer alimentos saudáveis. É dentro de casa que se aprende a comer maçã, por exemplo”.

 

A apresentadora sugere que em escolas com período integral haja um trabalho em que a instituição seja responsável por oferecer opções saudáveis para as crianças, para que elas tenham acesso a uma comida balanceada e nutritiva. Além disso, o discurso sobre alimentação saudável, por parte da escola, deve se dar dentro de um contexto lúdico.

 

Para a nutricionista do Instituto Movere Tatiana Damasceno, especialmente as escolas públicas devem estar atentas também aos horários das refeições, que, às vezes, são, em si, um problema para a adequada alimentação. Frequentemente, a merenda é arroz e feijão ou macarrão, alimentos servidos tradicionalmente no horário de almoço, entre 9h30 e 10h ou, como um prenúncio do jantar, entre 15h30 e 16h. “O maior erro entre as crianças é o consumo excessivo de alimento, tanto em casa quanto na escola. Muitos almoçam duas vezes”, observa a nutricionista.

 

Guilherme, filho de Heliane, é um caso típico. O menino estuda de manhã em uma escola pública e muitas vezes sai de casa, na Vila Brasilândia, sem tomar o café da manhã. Na escola, ele não dispensa a merenda-almoço que é servida no final da manhã. Quando sai da escola, ele também não dispensa o almoço feito no capricho pela avó. Resultado: ele almoça todos os dias duas vezes.

 

Além de agradar o paladar mirim, levar produtos industrializados para a escola pode significar também status e competição e, porque não, sentido de pertencimento ao grupo. Ter uma fruta ou algo menos convencional é correr o risco de ser excluído, zombado ou classificado como estranho. Por outro lado, o sobrepeso e a obesidade são os principais fatores de diferenciação no tratamento entre as crianças na escola. Não raras vezes, na Escola Estadual Professor Paulo Rossi, os alunos “fofinhos” ficam isoladas ou se envolvem em brigas com outras crianças por terem sido xingadas.

 

O ambiente escolar pode ser muito duro para a criança que está fora dos padrões, tanto físicos quanto alimentares. Segundo a psicóloga Patrícia Spada, a forma como a criança é tratada por seus colegas cria a possibilidade de ela desenvolver baixa autoestima, problemas para se relacionar e outras complicações.

 

Na escola, as crianças obesas sofrem todas as formas de discriminação. Ela vai sofrer bullying, vai ser deixada de lado, não vai querer brincar, principalmente por não ser chamada para fazer esporte, jogar futebol ou para participar de qualquer brincadeira que exija um rendimento físico maior. “São nos momentos de diversão que ela fica mais isolada e estressada. E recebe de xingamentos a apelidos nocivos, tudo isso é muito sofrido para criança”, diz Patrícia.

 

A perversidade com relação às crianças obesas, no entanto, não é algo restrito às relações do mundo infantil. Ivo Mortani Junior, psicólogo do Instituto Movere, explica que dentro do bullying, vê-se não só o bullying de crianças com crianças. “Eu já peguei depoimentos, relatos, de bullying até de professores. E é sempre a verbalização, com relação aos nomes, aqueles clássicos que a gente sabe que fazem tão mal para essas crianças. A gente pensa que acontece só entre crianças, mas até professores fazem esse tipo de comentário. É bem complicado”.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Estudo brasileiro realizado pela Fundação Oswaldo Cruz (ENSP - Fiocruz), em parceria com outras instituições, sugere que o bullying (que pode ocorrer de diversas formas, como xingamentos, gozações, perseguições, preconceito e assim por diante) é percebido pelos professores, porém, há indícios fortes de que os próprios profissionais da educação atuam como agentes preconceituosos para com crianças obesas.

 

A pesquisa foi feita com 63 professores da rede pública de ensino municipal, em Seropédica, no Rio de Janeiro, que responderam um questionário com referências ao bullying, mas que não mencionava a palavra e seu conceito. Mas o peso do preconceito social, seja ele aberto ou velado, não é a única maneira de a criança obesa se sentir angustiada dentro da forma que a família e a sociedade tentam conter a sua existência. E esse espaço é bem apertado.

 

Crianças obesas têm problemas para encontrar roupas que as deixem confortáveis e “na moda” com os colegas. No ensino público, por exemplo, os uniformes escolares são fornecidos em tamanhos padronizados, e isso pode causar desconforto para os que estão acima do peso.

 

Mesmo fora do ambiente da escola, Márcia reclama que não tem roupa que sirva no Murilo, o menino que, com 10 anos e 1,60 metros de altura, pesa 76,7 quilos. “Ele usa calça de adulto e se incomoda quando está perto dos primos, fica estranho, não se mistura mais, só quer ficar dentro de casa. Mas quer ser como o primo Iago, que é magro”, diz a mãe, que trabalha como diarista e vive com a família no Jardim Alviverde, Zona Sul de São Paulo.

 

 

 

Divulgação/Reféns da saciedade: os conflitos da obesidade infantil
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Não caber nas roupas que a sociedade reserva para ela causa danos à criança obesa que vão muito além do desconforto físico. A endocrinologista da Liga de Obesidade Infantil do HCFMUSP, Maria Edna de Melo, chama atenção para a carga psicológica que a doença traz. A obesidade tem um impacto social e psicológico grande na vida do obeso e, mesmo assim, ainda hoje é tida como uma questão de "escolha" do indivíduo e não como uma doença, até mesmo por profissionais de saúde. Isso não é verdade, diz a médica da FMUSP. "É preciso desmistificar essa ideia generalizada".

 

A obesidade passou a ser encarada como doença depois que o sistema de saúde americano teve problemas com o número de doenças associadas ao excesso de peso, há cerca de 20 anos. Se a obesidade não é tratada, é preciso tratar outras doenças causadas por ela, como o diabetes, que necessita de duas ou três medicações mensalmente, o colesterol e a hipertensão.

 

"Foi somente depois da constatação dos americanos sobre o impacto econômico da doença que pesquisas começaram a ser desenvolvidas e a obesidade, a ser encarada como uma doença séria, que merece tratamento adequado e não somente a recomendação de parar de comer em excesso", diz a endocrinologista da USP.

 

Na família de Márcia, mãe de Murilo, todos sofrem com problemas de peso. Ela própria chegou a fazer tratamento no mesmo lugar que o filho, mas desistiu pela falta de tempo. Ela é diarista, e fica fora de casa das 6h às 19h, quatro dias na semana. Quando Márcia está trabalhando, sua filha Rubi, de 20 anos, prepara as refeições da casa.

 

A garota tem o hábito de paparicar o irmão caçula com bolo e brigadeiro, que Murilo não dispensa de forma alguma. “Não tenho culpa, minha irmã também está gorda mas faz, e eu estou morrendo de fome”, diz o menino, com os olhos cravados no chão e num sussurro quase inaudível. Márcia assume que também come mal. “Eu erro, mas já melhorei muito. Não consigo ficar sem comer chocolate, por exemplo. O meu erro é esse, é o doce, mas o Murilo come muito mais”, defende-se.

 

"A repercussão psicológica para uma criança é mais impactante do que no adulto obeso, porque são anos de repressão, com frases como 'você precisa fechar a boca' ou 'você sabe que não pode comer isso'", afirma a endocrinologista da USP Maria Edna. A criança vai desenvolver autoestima baixa, com problemas de relacionamento, pois ela vai se achar feia, não digna de amigos. Além disso, ela irá sentir muita tristeza, que pode evoluir para a depressão. Já existem casos de crianças que se cortam, comportamento antes mais recorrente entre adolescentes, alerta a psicóloga Patrícia Spada.

 

Márcia sabe que o exemplo vem de dentro de casa, mas alega que é constantemente contrariada por Márcio, seu marido. “A gente vai pedir duas pizzas e ele quer três, com refrigerante ainda. Se eu deixasse, ele pediria pizza toda semana”, diz Márcia com desânimo. "Ontem no mercado ele queria trazer bisnaguinha, e eu peguei a integral, mas por ele nada deveria ser integral", desaprova Márcia.

 

Ela desabafa que se sente sobrecarregada, porque o marido dá lanche para o filho e compra comida escondido. Quando Márcia nega algo, o Murilo recorre ao pai, que sempre diz sim.

 

"Esses dias o Murilo já tinha jantado e eu não, então comprei um x-salada para mim. Ele queria, mas não deixei porque ele já tinha comido. Só que o pai dele falou que podia, mesmo eu tendo dito não. Resultado: o Murilo comeu um lanche inteiro, e o Márcio ainda deu metade do dele para o menino. A gente sempre acaba discutindo por causa disso", confessa a mãe.

 

A criança muitas vezes se sente responsável pela tensão familiar, considera-se motivo de discussão entre os parentes. "É muito complicado, o pai culpa a mãe, ou a mãe culpa o pai, porque a criança está gorda, então isso também gera nela um sentimento de culpa, porque os pais estão brigando por causa dela", diz a psicóloga Patrícia Spada.

 

Qualquer conflito que ocorra dentro do ambiente familiar interfere na alimentação da criança. "É muito frequente aparecer no histórico da criança aspectos de desagregação familiar, conflitos entre os membros, como a separação de pais ou a morte de um ente querido, por exemplo. Todos são eventos que interferem muito no funcionamento da criança", conta o psicólogo Ivo Mortani Junior.

 

Com a grande probabilidade de uma criança obesa permanecer obesa na vida adulta, ela enfrentará um mercado de trabalho cruel e amargará outro prejuízo grave do preconceito, a segregação econômica. “Não se trata apenas da questão estética, mas também da questão financeira: empresas acreditam que quem é gordo vai trazer prejuízos, vai precisar faltar mais, vai ter mais problemas físicos”, diz Patrícia Spada.

 

A complexidade dessas questões pode causar ansiedade e piorar o quadro. Crianças que roem muito a unha, não conseguem ficar paradas, mexem no cabelo, qualquer tipo de mania já um sinal de ansiedade, de acordo com Mortani Júnior, psicólogo do Instituto Movere.

 

Crianças obesas descontam a ansiedade na comida, como mecanismo de defesa por elas não conseguirem enfrentar a situação. “Ela precisa ter um certo alívio com relação a isso, porque o pensamento dela é de que ela não é suficiente, merecedora e tudo isso gera a ansiedade, partindo para o desconto na comida”, afirma Mortani Júnior.

 

 

Mesmo com o avanço da sociedade, quebrando tabus, lutando contra diversos tipos de discriminação e questionando padrões de beleza, a doença ainda é alvo de preconceito em vários ambientes.

 

Heliane sussurra ao falar do marido Odilon. O fiscal de ônibus pesa mais de 120 quilos e está na fila de espera para uma cirurgia bariátrica no Hospital das Clínicas de São Paulo. O casal morador da Vila Brasilândia, em São Paulo, são os pais do pequeno Guilherme, menino de sete anos que tem 1,51 metros e pesa 44 quilos.

 

Odilon, nas palavras sussurradas da mãe do Guilherme, tenta ser uma pessoa de bem com a vida e levar na brincadeira quando seus colegas fazem piadas sobre o tamanho de suas roupas ou sobre ele não conseguir fazer atividades diárias simples para pessoas não obesas. Ele finge que não escuta, pois não gosta de atritos com os poucos amigos que tem.

 

Se isso acontece com um adulto, que teoricamente tem maturidade para lidar com adversidades, sem ferir moralmente sua autoestima e autoconfiança, imagine quando se trata de uma criança obesa, lidando com todas as formas de discriminação, seja na escola, no grupo de amigos do bairro ou até mesmo na família. Quando ela não é aceita pelos amigos ou pela família, a criança fica sem confiança nenhuma nela mesma, diz Ivo Mortani Junior, psicólogo do Instituto Movere.

 

Segundo a psicóloga Patrícia Spada, esse tipo de repressão faz com que o quadro da criança piore. “Ela entra num estado de tamanha revolta e come mais, como que para desafiar quem a está atacando”. Na contramão dessa atitude, a psicóloga aconselha os familiares a não falarem coisas como ‘é por isso que você está gordo, só fica comendo’, pois, segundo a especialista, esse tipo de fala aprofunda o conflito dolorosamente vivido pela a criança.

 

O que realmente ajuda e funciona é a mudança geral dos hábitos de vida de todos os membros da família, com a adoção de dieta alimentar saudável, prática de atividades físicas e, acima de tudo, o diálogo como ponte para vencer as barreiras da mudança. “Mas o que percebo é que isso raramente acontece. A família segrega a criança obesa, que não pode comer nada, e sempre alguém deixa de fazer o apoio em conjunto”, diz a psicóloga Patrícia.

 

A vontade de ajudar famílias como a de Gabriel, Guilherme, Gustavo, Isabela, Lorenzo e Murilo motivou a nutrição Gabriela Bizari (que trabalhou com crianças obesas na Liga da Obesidade Infantil da Faculdade de Medicina da USP, quando ainda era estudante na especialidade) e o designer Adriano Furtado a criarem uma ferramenta interativa sobre educação nutricional.

 

A ideia de criar o Meu Dia Alimentar, diz Gabriela e Adriano, surgiu porque hoje não existe uma fonte segura e fácil sobre alimentação. Muitas vezes, a abordagem acaba sendo chata e difícil -- o que desmotiva muitas famílias e crianças a aprenderem mais sobre o que comem, mesmo sendo um assunto do interesse de todo mundo.

 

Os dois criadores falam entusiasmados sobre o jogo. “Pensei em como poderíamos começar a conversar com uma criança (até mesmo na primeira infância, que é o importante período da vida em que começa a se formar o hábito alimentar) sobre alimentação, de uma forma intuitiva, interativa e interessante para elas”, diz Gabriela.

 

A partir de diversos testes, foi escolhido o formato atual: um jogo de quebra-cabeça, em um tabuleiro com 144 peças que representam diversos alimentos, divididas em nove cores que mostram os grupos alimentares. A ideia é que cada um preencha o tabuleiro de acordo com os alimentos que comeu no dia.

 

“A criança entende que é um jogo, então, ela quer ganhar sempre, ou seja, tem que existir uma ação externa para ela vencer”, conta Gabriela. As crianças que não conseguem completar muitas peças do tabuleiro se sentem desafiadas a ganhar o jogo no dia seguinte. Assim, a própria criança começa a moldar sua rotina alimentar e a aprender sobre os alimentos.

 

“Notamos que falta muito no cotidiano das crianças a ingestão de frutas, de verduras, legumes e lácteos”, conta Adriano. O pedido da criança tem grande influência na alimentação da casa. Depois de aprender com o ‘Meu Dia Alimentar’, a maioria dos alimentos saudáveis que o filho pedir, os pais irão comprar.  

No bairro Artur Alvim, na Zona Leste de São Paulo, Stefanie Mainara, 12 anos, prepara-se para sua primeira avaliação no Instituto Movere, organização não governamental que, desde 2004, combate e previne a obesidade infantil. Foi depois da indicação da pediatra que a mãe de Stefanie, Adélia, 46 anos, procurou o local para fazer o tratamento. “Nem acreditei. Agradeci muito, porque jamais teria dinheiro para arcar com o tratamento que eles oferecem aqui”, conta a mãe, aliviada.

 

Foi a partir da característica multifatorial da obesidade que o Instituto Movere desenvolveu uma metodologia multidisciplinar para o tratamento da doença. Voltado para crianças em vulnerabilidade social e de baixa renda, que não podem pagar por esse serviço diferenciado, o Instituto Movere oferece atendimento de endocrinopediatras, nutricionistas, psicólogos, fisioterapeutas e educadores físicos.

 

“Nós precisávamos de um espaço para essas crianças que tivesse uma característica diferente daquela de um hospital”, conta Vera Lucia Perino Barbosa, presidente do Instituto. As crianças não tinham um local para fazer exercícios físicos e passar por uma equipe com vários profissionais. Assim, a ideia foi criar tudo isso num lugar só. Ter uma cozinha experimental, atividades físicas diferenciadas. “O que percebemos foi que a metodologia funcionava, e as crianças começaram a mudar muito o comportamento”.

 

Após o período de triagem, quando a criança passa por todos os profissionais da organização, cada caso é analisado para que atividades físicas sejam prescritas, além do planejamento das dinâmicas com o psicólogo e das aulas nutricionais. Os pacientes são tratados durante um ano, para que ocorra uma mudança efetiva no comportamento não só da criança, como também da família.

 

“Tudo é feito com muito critério, é preciso respeitar as características de cada adolescente e cada criança. Conforme os pacientes melhoram ao longo do tempo, nós traçamos outros programas de treinamento”, explica a Presidente do Instituto. A triagem do segundo semestre de 2015 está com uma lista de 60 crianças e a expectativa é de que o número só aumente. “Estamos com crianças na fila de espera e esperamos ter mais crianças para atender até o final de 2015. Vamos fechar um grupo, mas ao longo do ano mais crianças vão entrando”, explica Vera.

 

Todo o histórico alimentar das famílias é verificado já na primeira avaliação nutricional - são levantados desde os hábitos da criança até o ambiente em que ela está inserida. Após análise, são apontados os principais erros alimentares a serem trabalhados, tudo através de uma reeducação alimentar dos filhos e dos pais.

 

Por meio de atendimentos em grupo, aulas lúdicas e oficinas culinárias, busca-se introduzir no universo das crianças um conhecimento alimentar que mude a relação dos pequenos com a comida. “Eles têm aversão a vários pratos, acham que tudo é ruim sem nunca terem experimentado. São nessas atividades que eles irão conhecer melhor os alimentos, entender o que é alimentação saudável, aprender a cozinhar e a degustar. É um momento divertido para aceitarem alimentos novos”, relata a nutricionista Tatiana Silva Damasceno, do Instituto.

 

Os pais são os pilares para o sucesso da reeducação alimentar e, por isso, metade do programa é dedicado a eles. Na concepção do Movere, segundo Tatiana, “não é só mudar a criança. Quem cuida da alimentação são os pais, quem faz as compras são eles. Então é essencial o trabalho em conjunto com a família”. Ela conta que os melhores resultados acontecem quando as famílias participam e mudam seus hábitos, porque os filhos se espelham muito nos pais. Se eles passam a comer mais verduras e legumes, a criança vai sentir vontade de comer também.

 

Cada aula aborda um tema variado para que, pouco a pouco, as crianças aumentem seu repertório de informações sobre o que comem e façam boas escolhas no dia a dia. A nutricionista do Movere alerta que é muito difícil mudar a alimentação de repente. “Por isso, em nossas aulas temáticas, estabelecemos metas a serem cumpridas, em vez de apresentar um cardápio severo para eles seguirem. Mudanças radicais duram pouco tempo, e no caso de crianças obesas, a manutenção é vital”.

 

A visão do programa é sistêmica. São vários profissionais atuando ao mesmo tempo no começo do tratamento. Uma vez por semana as crianças passam a tarde no Instituto, onde são divididas em grupos por idade, de 6 a 17 anos, e todas as atividades são feitas nesse dia.

 

A educadora física Christiane Souza Moraes Lima, que trabalha há dois anos e meio no Instituto Movere, afirma que a atividade física potencializa a perda de peso. Entre os estudos que baseiam a sua afirmação, cita Christiane, está uma pesquisa da Universidade Federal de Juiz de Fora que conclui que a atividade física regular melhora a aptidão cardiorrespiratória, a composição corporal e o bem-estar psicossocial.

 

O exercício físico tem sido usado como uma ferramenta importante na prevenção e tratamento da obesidade, através do desenvolvimento de qualidades físicas que alteram positivamente a composição corporal e a atividade metabólica, atenuando os fatores associados ao excesso de peso.


 

Parece que o casal acertou no alvo. O êxito do guia Meu Dia Alimentar é tanto que, em 2015, ele foi incorporado ao projeto 1,2,3 e Lácteos!, uma iniciativa cultural e educacional de Lei Rouanet, com apoio da Associação Médica Brasileira, Sociedade Brasileira de Alimentação e Nutrição,  entre outros. 

 

A proposta do 1,2,3 e Lácteos! é promover a educação alimentar de crianças entre 7 e 11 anos de idade. “Quando se fala em alimentação, crianças nessa faixa etária têm um consumo menor de alimentos importantes e nutrientes essenciais, como o cálcio”, conta Maria Gandini, nutricionista e gerente de Desenvolvimento de Categoria da Dannone, que baseia sua posição em dados de diversas pesquisas sobre a diminuição do consumo de leite entre as crianças e o maior consumo de bebidas açucaradas e artificiais. 

 

“A inciativa é exatamente para tentar reverter esse quadro, e tornar mais adequado não só consumo de cálcio, mas a alimentação como um todo”, explica a nutricionista da Dannone. Com atuação em escolas públicas de todo o Brasil, o projeto 1,2,3 e Lácteos! busca fortalecer a recomendação do Ministério da Saúde para o consumo de três porções de lácteos por dia. 

 

Foram 10 mil crianças impactadas pelo projeto, em 150 escolas, só em 2013. Em 2014, o número aumentou para 84 mil crianças de 698 escolas e, em 2015, a expectativa é de que 200 mil alunos sejam beneficiados com o projeto. Maria Gandini explica que o 1,2,3 e Lácteos! educa crianças que já sabem ler e têm certa autonomia, através de atividades lúdicas e peças de teatro.
  
A educação alimentar proposta pelo projeto não acontece só dentro da sala de aula, existe também a preocupação de integrar os pais, com tarefas e atividades que envolvam a família, para que todos mergulhem no tema da alimentação saudável. “Principalmente porque não adianta a criança ter isso na escola e os pais, que são os responsáveis pela compra dos alimentos, não serem impactados”, justifica Maria Gandini.

 

O 1,2,3 e Lácteos! É, portanto, uma junção entre a escola -- ambiente responsável pela formação das crianças -- e os hábitos alimentares da família, tudo isso na tentativa de transformar de forma positiva os hábitos alimentares.  

1,2,3 e Lácteos!

Instituto Movere

Vimeo/Meu Dia Alimentar
Youtube/1,2,3 e Lácteos!
Youtube/Reféns da saciedade: os conflitos da obesidade infantil

Quando Ana Paula Mendes, de 35 anos, recebeu o alerta da pediatra de que seu filho Pedro, na época com 5 anos, estava com obesidade, ficou espantada. Ela jamais imaginou que a criança estaria com a doença. A herança genética da família do pai de Pedro para a obesidade também nunca havia figurado na lista de suas preocupações. A partir do diagnóstico da médica, Ana Paula precisou mudar os hábitos da família. “Eu comecei a notar que o Pedro engordou, ele pesava 35kg, mas era tão fofo, a gente achava lindo”.

 

Pedro atualmente tem 10 anos, é saudável, pratica esportes e pesa 38kg. Até os 5 anos de idade do garoto, a família morava com os pais de Ana Paula, no bairro do Rio Pequeno, Zona Oeste de São Paulo. Nessa época, ela acreditava que não existia problema nos alimentos preparados por sua mãe, já que ninguém de sua família luta contra a balança. “Só comíamos o que os meus pais ofereciam. E eu realmente achava que tudo aquilo era saudável, pois minha família inteira é magra”, conta ela.

 

Mesmo desestimulada pelos comentários de seus pais, Ana Paula enfrentou o fogão, que nunca havia pilotado seriamente antes, com a bravura de uma leoa que luta pela saúde do filhote. Mas, dessa vez, a trilha percorrida foi a da alimentação saudável, assim como recomendado pelo médico, com pouco sal, sem linguiça, salsicha, condimentos e outros ingredientes que os avós maternos de Pedro adoram. “Chegaram a dizer que ele ia morrer de fome, por 'só' comer arroz, feijão sem bacon, salada, legumes e frango. Eles não aceitam muito bem essa história”.

 

Assim como Heliane, esposa do fiscal de ônibus Odilon e mãe de Guilherme, Ana Paula não tem o apoio do marido na hora de manter uma alimentação saudável em casa. “Quando eu cozinho, muitas vezes ele come reclamando da falta de sal, por exemplo. Se ele chega mais cedo em casa, aproveita e cozinha o que ele quer. Sempre faz frituras, coisas muito salgadas e nada de legumes e verduras”.

 

A mãe de Pedro seguiu à risca as recomendações da pediatra. Ela tenta sempre diversificar a oferta, com legumes como cenoura, abobrinha, beterraba e couve flor. Essas mudanças foram aliadas à prática de uma atividade física, na época, o judô. Hoje, o garoto prefere jogar futebol, esporte que começou a praticar na Escola Municipal de Ensino Fundamental Desembargador Amorim Lima, também na Zona Oeste da capital.

 

A diferença no comportamento do menino foi muito positiva, em todos os aspectos relacionados à sua vida. “Ele era muito preguiçoso no judô. As crianças iam até a ponta do tatame, voltavam, e ele ainda estava indo. Depois que ele passou a praticar o esporte regularmente, notei que seu condicionamento físico melhorou bastante, além da disposição para fazer as coisas em casa e até mesmo seu rendimento na escola. Ele também começou a querer jogar bola, acordar mais cedo e a dormir melhor”.

 

Ana Paula também fala do entrosamento do filho com outras crianças, pois antes ele era mais isolado. “Acredito que o esporte ajudou ele a se socializar”, comemora a mãe do pequeno que, com a sua ajuda, estatelou a obesidade no tatame da alimentação saudável.

Amanda Andrade

 

22 anos. Com pai dentista, a alimentação em minha casa sempre foi a mais saudável possível -- não é só com a escovação que se evitam as cáries. Cresci entre frutas e verduras, a má alimentação e obesidade nunca foram presentes no meu dia a dia. Conhecer e entender uma realidade tão distante foi um processo desafiador, enriquecedor e chocante. Entender os símbolos por trás do alimento para as crianças foi um grande desafio que me tirou da zona de conforto e apresentou dinâmicas familiares e individuais muito distintas da minha. 

Marianne Mitsui

Pisciana de 25 anos nascida no interior de São Paulo. Quando criança, fazia minha mãe chorar por não querer comer e, quando comia, era miojo. Vim para a capital paulista ao completar a maioridade, quando aprendi a fazer arroz pela primeira vez. Mesmo nessa época, a geladeira era abastecida por comida pronta. Fugi para a Austrália no ano seguinte, onde descobri o prazer de cozinhar e o desejo de fazer jornalismo. Apaixonada por crianças, testemunho a má alimentação de minha sobrinha e meu primo, o que me motivou a desvendar o tema e compreender por que comer é um ato tão complexo na infância. 

Mariana Amorim

Paulistana, 23 anos. Nasci em São Paulo e fui criada por uma família simples e acolhedora. Aos 18, quando decidi fazer jornalismo, queria contar grandes histórias. E hoje, perto de me formar, sinto que contei uma das mais importantes da minha vida: a de crianças obesas. É uma realidade que eu conheço de perto, pois fui uma adolescente com sobrepeso e até hoje luto para superá-lo. E dar voz a essas famílias e, principalmente, esses conflitos que parecem ter vida própria, é muito importante para acabar com o preconceito e melhorar o tratamento e a recuperação dos doentes. Essa é uma história sobre crianças, mas qualquer pessoa com problemas de peso pode se identificar e, por que não, mudar. 

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Youtube/Reféns da saciedade: os conflitos da obesidade infantil

Enquanto Pedro segue confiante pela vida entre uma brincadeira e outra com os amigos do futebol ou do judô, do outro lado do muro quase intransponível que segrega as crianças obesas na nossa sociedade, está o Murilo, o menino morador do Jardim Alviverde, na Zona Sul de São Paulo, que, assim como o Pedro, tem 10 anos, só que 1,60 metros de altura e 76,7 quilos que não cabem mais no tamanho das roupas que os garotos da sua idade usam e que, por isso, tem que vestir calças de adultos – motivo suficiente para que se esconda dos outros moleques, na maior parte do tempo.

 

Murilo não quer ir para o futebol e, talvez, nem mais acredite que mereça ter uma infância feliz.

 

Se nada for feito, daqui a 10 anos, é quase certo que ele fará parte dos 21% da população adulta que padece com a obesidade e que, por isso, tem que dobrar um leão por dia para vencer os preconceitos que dificultam a conquista dos melhores postos de trabalho por pessoas obesas. Daqui a 30 anos, o vigor de sua juventude poderá ser abreviado pelos primeiros sintomas da doença cardiovascular, com o surgimento do diabetes, da hipertensão e do colesterol alto.

 

Nessa trajetória, não é pequena as chances de, aos 50 anos, sua história confirmar as estatísticas da Organização Mundial da Saúde que mostram que as doenças cardiovasculares, agravadas pela obesidade, são as que mais matam no mundo.

 

Mas a história do Murilo não tem que acabar assim, se depender do empenho das dezenas de pessoas ouvidas nessa reportagem -- profissionais de saúde, médicos, psicólogos, nutricionistas, professores de educação física, jornalistas, cineastas, comunicadores -- que, por sua vez, representam milhares de pessoas engajadas no combate da obesidade infantil no Brasil afora.

 

Elas estão trabalhando agora, neste exato momento em que você lê este texto, em projetos inovadores da sociedade civil e na proposta de políticas públicas que levem à mudança dessa realidade nas próximas décadas, para que Pedros, Murilos, Guilhermes e Isabelas tenham direito a uma infância livre, leve e solta, amparada em famílias que valorizem hábitos de vida saudáveis. E para que essa infância seja o prenúncio de uma juventude saudável e repleta de perspectivas e oportunidades para todos; a antessala de uma vida adulta produtiva; e o caminho seguro para uma velhice em que o bem-estar e a dignidade humana sejam companheiras permanentes da existência.

Desfecho
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